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Testes Psicológicos: O que são e de quem?

09/11/2011

por Lucas de Francisco Carvalho

Não há na literatura científica nacional publicações indicando o nível de concordância dos psicólogos brasileiros acerca da definição dos testes psicológicos e da Lei que restringe o uso dos testes considerados como psicológicos somente ao psicólogo. Ainda assim, discussões extraoficiais em relação a esses dois pontos não são incomuns no âmbito acadêmico no qual os pesquisadores lidam diretamente com as ferramentas psicológicas e procedimentos relacionados, e também na atuação clínica e outros contextos em que o psicólogo faz uso dos pressupostos e instrumentos de avaliação. Considerando essa questão, serão aqui explicitadas questões nucleares em relação à definição e uso restrito dos testes psicológicos.

Para iniciar a reflexão, é importante trazer à tona o que é esperado do psicólogo no país. De acordo com a Lei no 4.119 de 1962, são funções do psicólogo (grifo do autor):

  1. Utilizar métodos e técnicas psicológicas com o objetivo de:
    1. diagnóstico psicológico;
    2. orientação e seleção profissional;
    3. orientação psicopedagógica;
    4. solução de problemas de ajustamento.
  2. Dirigir serviços de Psicologia em órgãos e estabelecimentos públicos, autárquicos, paraestatais, de economia mista e particulares.
  3. Ensinar as cadeiras ou disciplinas de Psicologia nos vários níveis de ensino, observadas as demais exigências da legislação em vigor.
  4. Supervisionar profissionais e alunos em trabalhos teóricos e práticos de Psicologia.
  5. Assessorar, tecnicamente, órgãos e estabelecimentos públicos, autárquicos, paraestatais, de economia mista e particulares.
  6. Realizar perícias e emitir pareceres sobre a matéria de Psicologia.

 

Assim, considera-se logo nas funções do psicólogo o uso de métodos e técnicas psicológicas, bem como determinados objetivos que esse uso deve visar. Mas a Lei 4.119 vai além de determinar como função do psicólogo o uso de métodos e técnicas psicológicas, de modo que está no Capítulo III, parágrafo primeiro do décimo terceiro artigo dessa Lei, “Constitui função privativa do Psicólogo a utilização de métodos e técnicas psicológicas...”.

Fica claro, então, que além de ser esperado o uso de instrumentos psicológicos por esse profissional, está constituído por lei que somente o psicólogo poderá fazer uso dessas ferramentas no cotidiano profissional. Assim sendo, deve ser claro aos profissionais de psicologia e profissionais de outras áreas o que são os métodos e técnicas psicológicas, a fim de que ferramentas não psicológicas não entrem nesse bojo e que cada profissional tenha seus direitos garantidos.

O artigo primeiro da Resolução CFP no 002 de 2003, dispõe que “Os Testes Psicológicos são instrumentos de avaliação ou mensuração de...” e continua de maneira mais detalhada em parágrafo único “são procedimentos sistemáticos de observação e registro de amostras de comportamentos e respostas de indivíduos com o objetivo de descrever e/ou mensurar características e processos psicológicos, compreendidos tradicionalmente nas áreas emoção/afeto, cognição/inteligência, motivação, personalidade, psicomotricidade, atenção, memória, percepção, dentre outras, nas suas mais diversas formas de expressão, segundo padrões definidos pela construção dos instrumentos.”.

Considerando a Lei 4.119 e a Resolução no 002/2003, está posto o seguinte cenário, os profissionais formados em psicologia (formam-se em 5 anos e podem atuar em praticamente qualquer área, mas essa é outra discussão) podem e devem utilizar métodos e técnicas psicológicas, sendo os únicos profissionais habilitados para tanto. A primeira problemática derivada diretamente desses pressupostos é: quais são os testes psicológicos? Partindo da definição de testes psicológicos, com a finalidade de determinar quais testes são considerados como psicológicos ou não, foi criado o Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (SATEPSI), um sistema componente do Conselho Federal de Psicologia (CFP).

A partir do estabelecimento do SATEPSI, um teste pode ser classificado como tendo: parecer favorável, como por exemplo, os testes que avaliam a personalidade por meio do modelo dos cinco grandes fatores, Inventário de Cinco Fatores NEO Revisado (NEO-PI R) e a Bateria Fatorial de Personalidade (BFP); parecer desfavorável, como o Teste de Personalidade 16 PF e o Inventário de Ansiedade Traço-Estado (IDATE); ser considerado não psicológico, como o Teste de Desempenho Escolar (TDE); ou ainda, ser considerado psicológico, mas não ter sido submetido ao SATEPSI, como a Binge Eating Scale (BES) que avalia a obesidade de acordo com a gravidade da compulsão alimentar periódica.

O desenvolvimento do SATEPSI é um importante indicativo do reconhecimento da importância do uso adequado dos testes psicológicos no país. Ainda assim, a definição em vigor para esses testes e o uso restrito dos mesmos para o psicólogo são pilares inevitáveis que dão base para o SATEPSI e para a formação e atuação em psicologia, o que têm implicações importantes como consequência, nem sempre favoráveis.

Um primeiro ponto que merece destaque nesse contexto é a definição de testes psicológicos. Entre os inúmeros construtos apontados na resolução definindo testes psicológicos, pode-se considerar a “atenção” para um rápido exemplo. Será que esse é um construto tipicamente psicológico? Mais que isso, será que é um construto o qual somente o psicólogo tem competências para avaliar? Com base nos pilares apresentados até aqui, a resposta parece ser sim, já que testes como o Teste Computadorizado de Atenção (TCA) são reconhecidos pelo SATEPSI como psicológico e, portanto, na prática profissional somente pode ser utilizado pelo psicólogo. Porém, um teste como esse não poderia ser utilizado por um neurologista? Isto é, será que esse profissional não tem as habilidades garantidas em sua formação para realizar uma avaliação da atenção?

Exemplos poderiam ser dados com outros construtos estudados em psicologia que estão na interface com outras ciências. Será que o instrumento Inventário de Depressão de Beck (BDI-II), que avalia sintomas de um transtorno que é usualmente estudado e diagnosticado na psiquiatria, não poderia estar habilitado para psiquiatras? Será que a formação deles não garante essa possibilidade? Por enquanto, não é possível chegar a uma resposta consensual sobre essas perguntas, uma vez que o assunto continua sendo debatido e os prós e contra para diferentes posições tem sido argumentados. A partir desses exemplos procurou-se evidenciar uma problemática na área, qual seja, a abrangência da definição para testes psicológicos, desconsiderando que determinados construtos também são estudados por outras áreas da ciência (além da psicologia).

Ainda, vale a pena ressaltar que a abrangência da definição dos testes e uso não são aspectos considerados com igual peso para toda e qualquer ferramenta de avaliação na área. Para exemplificar essa questão pode-se pensar na Structured Clinical Interview (SCID), que é utilizada em clínicas de profissionais da área de saúde mental para diagnósticos psiquiátricos, não é considerada como uma ferramenta somente psicológica. De fato, é bastante plausível considerar a SCID como um daqueles instrumentos que ficam na interface entre áreas da ciência, contudo, outros instrumentos nesse mesmo patamar são considerados como restritos ao psicólogo.

Ao lado disso, nessa mesma linha de raciocínio, os testes que têm interface com outras áreas não poderiam ser restritos a outros profissionais que não psicólogos? Já que os psiquiatras estudam os sintomas típicos do transtorno depressivo maior, o BDI-II deveria ser de uso restrito a eles? Ou, considerando o estudo da memória pelos neurologistas, será que instrumentos como o Teste de Memória Visual (TMV) deveria ser restrito somente aos neurologistas?

Apesar do questionamento quanto à restrição de instrumentos avaliando construtos como atenção, sintomas de depressão, características de psicopatia e memória visual, a leitura crítica do panorama atual deve ir além. Isto é, tão importante quanto questionar a imposição restritiva a outros profissionais, tem igual relevância o questionamento em relação aos psicólogos, será que tem garantida a competência, o psicólogo formado, em todos os construtos considerados na resolução que define testes psicológicos?

Por exemplo, será que é razoável a pressuposição de que todo e qualquer profissional em psicologia no Brasil desenvolveu as habilidades necessárias para aplicação e interpretação de instrumentos complexos como é o caso do Rorschach? Talvez esse seja um desígnio que muitas vezes não é atingido e, se isso de fato ocorre, talvez não faça parte de uma postura ética assumi-lo largamente (ou totalmente) como atualmente é feito.

É provável que a questão da competência esteja em jogo nas problemáticas aqui levantadas. Isto é, considerando o exemplo anterior, alguns dos profissionais em psicologia podem terminar o curso com conhecimentos avançados no uso do Rorschach e outros sequer conhecerem essa ferramenta. (Aqui entra também a questão da escassez de critérios explícitos e consensuais para formação em psicologia, tópico que poderá ser debatido em outro momento). Além disso, outros profissionais podem se especializar no uso do Rorschach e, assim, demonstrar mais competência do que uma parte dos psicólogos para utilizá-la.

A partir das questões levantadas no presente texto, pretendeu-se expor uma visão crítica e reflexiva acerca da definição de testes psicológicos e também do uso restrito pelos psicólogos dos instrumentos assim considerados. Nesse contexto, fica claro que existem pontos divergentes que muitas vezes se configuram como paradoxos no sistema presentemente proposto. Um possível caminho para a concordância entre os pressupostos que guiam os profissionais seria adequá-los para um sistema baseado nas competências. Isto é, a atuação profissional (por exemplo, uso de testes) deveria considerar a formação desse profissional e a possibilidade de especialização nas diferentes áreas do conhecimento, bem como a experiência em diferentes campos de trabalho. Há luz no fim do túnel no que diz respeito a essa temática, mas é necessário que os profissionais, psicólogos e não psicólogos, voltem seus olhares para as questões inerentes ao atual panorama com vistas a estruturar um sistema mais justo e que garanta benefícios e minimização de prejuízos às camadas sociais atendidas por profissionais psicólogos e de outras áreas que realizam avaliação.